Barbárie branca, letrada — e o ecocídio de cada dia
Primata letrado. O fato irretocável, quase sublime, de termos nos tornado um primata letrado é o que nos fez continuar, caminhar, sobreviver, criar a “história”. Paradoxo radiante e brutal, o mesmo fato atenta contra todo o nosso singular legado: quando esse primata letrado se embrenha nos próprios códigos, chafurda-se na própria linguagem a ponto de crer que é apenas linguagem, a vida, enfim, assimila a necessidade de corrigi-lo, lembrá-lo que, muito mais que signo, é sangue e bactérias, átomo, interdependência. O atentado da nossa espécie nunca foi desumanizar-se — termo utópico, vago, vaidoso —, em ocasião de uma suposta animalidade. O atentado da nossa espécie é desaterrar-se, através de um excesso de humanização.
Complexo extincionista. Tamanho nosso impasse civilizacional, a filosofia, agora, abriga uma teoria e uma ética extincionista. São pessoas que estão convencidas de que o melhor para a história é a interrupção total da história, através do estratégico e paulatino desaparecimento da nossa espécie da biosfera. Pêndulo grotesco da nossa cultura: somente o furor de um pensamento que deifica o humano, credita a ele mesmo as capacidades mais extraordinárias, é que pode produzir, como efeito colateral, a pulsão que pretende programar a própria extinção. Uma megalomania positiva que pari uma megalomania negativa. Quando tínhamos um ou vários deuses sobre nossas cabeças, quando acreditávamos em leis superiores regentes do cosmos, nosso fanatismo era de outra índole. Estávamos livres, ao menos, do fanatismo pela própria imagem e pelas próprias pretensões, seja para nos tornarmos um deus artificializado ou uma nulidade induzida.
Luxos no ecocídio. As regiões nobres das grandes cidades são a propaganda enganosa do progresso, que soterram a realidade do ecocídio. Todo shopping, bulevar ou resort está intrinsecamente comprometido com o mito do desenvolvimento humano, da nossa superioridade à contingência da natureza. Profusão de fragrâncias, ambientes climatizados, um piso de porcelanato que reluz, um letreiro gigantesco, dourado: tais elementos materiais visam nos comunicar que há triunfo, segurança e conforto indestrutíveis. Para quem sabe do ecocídio, frequentar tais ambientes pode soar desesperador. Para quem está alheio ao ecocídio, é de um prazer e satisfação altamente perniciosos.
Temor e saber. Os seres só temem porque sabem. Há uma espécie de temor, basal, telúrico, necessário não apenas à sobrevivência, mas à sustentação da criação da vida. Uma espécie de temor ligada ao respeito, e o respeito, à veneração. Eis o temor-respeito-veneração, basal, telúrico, óbvio, que devemos manter acessos para que a vida se sustente. Como alguém que teme o mar. Teme porque o respeita, respeita porque o venera. E assim sente porque sabe que, diante do mar, não é nada. Aqueles que fundamentaram tal saber em relação com o mar inventaram o surfe: após todos os votos de temor, respeito e veneração, receberam a licença da cocriação com as turbulentas águas salgadas. Mas o ser humano, fruto desta cultura, nada teme em relação à Terra. Nada teme porque nada sabe. Sobre a Terra ele apenas se informa e, assim, acumula dados, produz a ciência que servirá, exclusivamente, em benefício próprio, em detrimento de tantas outras vidas sacrificadas. Por não saber, só utilizar, ele devasta.
Queda e desencanto. Impossível normalizar a civilização ocidental; impossível compará-la, em muitos aspectos, a qualquer outra civilização. Como se todas as outras civilizações, a despeito de suas anomalias, ainda habitassem algum recanto do paraíso, tivessem seus códigos mais importantes resguardados a deus e seus encantos coligados às estrelas. E que o Ocidente, enfim, protagonizasse o evento da queda completa, o choque generalizado, o apagão do mistério.
A inevitável revolução do ecocídio. Revoluções humanas dependem do desejo humano e das contingências de muitas forças, sobretudo as da história, sempre complexas. Quem ousa agendar uma revolução humana — “deve acontecer dentro de 50 anos” etc. —, seja ela qual for, vive a euforia e o delírio da própria narrativa, um cacoete de profeta secular. A única revolução real, palpável, agendada, alheia a desejos, é a revolução do ecocídio: esse tiro pela culatra da civilização branca, a galgar sobre os quatro cantos desta esfera azul, manifestando-se através de múltiplos estrondos. A esfera azul, casa do sapiens, esse grupo extraordinário, novato e passageiro, e de todas as espécies, muitas incrustadas neste solo desde os primórdios; a esfera azul, que hoje se mune do ecocídio, com o objetivo intrínseco de responder aos tantos ataques que sofreu. O ecocídio é a revolução agendada que ninguém quer atravessar. É a única grande revolução da nossa era.
Ecocídio. Convém a maioria ter a consciência crivada pelo fenômeno do ecocídio, ter ciência, dia após dia, do apocalipse e da possibilidade de renascimento (reencanto) da espécie. Andar na corda bamba, no fio da lâmina. Ter o coração atravessado pelo arpão do caos biosférico e mantê-lo ali, alojado no peito, rasgado na carne — e ter esta dor como norteadora das ações. Enquanto não for assim para, no mínimo, metade dos oito bilhões de sapiens, ainda subsistirá nosso desleixo e índole degenerativa com a Terra. O arpão fincado no peito de cada pessoa é o início da marcha contra o caos completo: sem a dor real, profunda, interdependente, como estágio propulsor, qualquer distração artificial da cultura nos reconfortará com a mentira da paz e da estabilidade. Não há paz e não há estabilidade. Os povos originários lutam, sem trégua, há quinhentos e trinta e um anos. Para nós, 2023 deveria soar como 1492, ano da invasão de Colombo, soou para os povos originários.
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Felipe Moreno
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